Todo mundo conhece os argumentos contra essa noção, mas eu chego à conclusão (relutando um pouco) de que os libertários são, de fato, humanos. Afinal de contas, a nossa espécie contém incontinentes verbais, deficientes mentais, os incuravelmente idiotas e Walter Block.
Walter Block é um acadêmico idoso inspirado por Ayn Rand, Nathanial Branden e Murray Rothbard. Os libertários o consideram agradável e até mesmo animado. Ele é professor de Economia na Universidade Loyola (da mesma ordem religiosa do papa Francisco, ou seja, jesuíta), mas na Louisiana (o centro histórico dos demagogos nos Estados Unidos), então empatou. Ele é adepto da Escola Austríaca (o que não é nada negativo), mas se intitula anarco-capitalista e “ateu praticante” (com 3,3 em 10 dá para passar?).
Em suas palavras (mas com grifo meu, sempre meu), ele “fortaleceu o libertarianismo para torná-lo mais coerente”. Ele pode ter se esquecido da idéia de Ralph Waldo Emerson, de que “uma coerência insensata é o duende das mentes pequenas” pois, ocupado com as grandes questões, ele reafirma o direito das pessoas de vender-se como escravos.
Talvez um contrato voluntário possa prever grilhões confortáveis e a escolha da chibata (por falar nisso, isso pode acontecer bastante no burgo nova-iorquino do Brooklyn, onde Block nasceu, especialmente depois de Cinqüenta Tons de Cinza).
Ele começa falando sobre o aborto, defendendo o direito da mulher de despejar o feto do seu útero como um inquilino indesejável num apartamento alugado (talvez, se o rebento tiver o dinheiro do aluguel, ele possa ficar).
Ele sustenta que as grávidas podem chacinar os nascituros se (a) o feto for “inviável” fora do útero; depois (b) se a mãe abrir mão do seu direito à “guarda” da pessoinha à espreita dentro dela, e (c) se “ninguém mais tiver ‘reivindicado’ esse direito, oferecendo-se para cuidar do feto”. (Juro que não inventei nada disso). Talvez, com “inviável”, ele queira dizer "se o feto não conseguir um cartão de crédito até o terceiro trimestre.
Então, se a mamãe publicar um anúncio no jornal dizendo ao seu "bacurinho" não-nascido que o contrato de aluguel venceu e que ele tem que sair, poderia outra mulher “reivindicar a posse”, oferecendo um útero a título gratuito com vista para o mar? Nesse caso, quem paga a mudança? Ou ela pode prometer uma adoção e obrigar a mãe biológica a carregar o nenê até o final? Ou, ainda, precisaria a candidata a mamãe pagar o aluguel do útero à mamãe titular e, nesse caso, com água e luz incluídas? É pra pensar.
Então, ele explica que se “ninguém mais no mundo” quiser o feto, o nascituro pode ser usado por seu responsável para experiências científicas. Não, meus caros, não estou brincando. Isso é reconhecidamente econômico porque, se forem "extraídos" na época certa, os nascituros comem menos do que os hamsters e os ratos de laboratório. Não sei bem como oito bilhões de pessoas conseguirão o direito de preferência, mas acho que, como amam dizer os libertários, “o mercado se encarregará disso”.
Talvez o amável leitor ache isso uma loucura, mas peço que você leve isto a sério: a coerência libertária está em jogo neste caso.
Walter Block pode até mesmo ser um tradicionalista. Os Estados Unidos têm uma tradição respeitável de ideólogos "excêntricos", começando pelo cristão-talibã comunista na Pedra de Plymouth, passando pelos jacobinos que havia entre os Founding Fathers, por cada camelô de remédios "milagrosos" do século XIX, pelos malucos racistas eugenistas do início do século XX, e chegando aos retardados aquecimentistas globais de hoje e ao Paul Krugman. O que eles têm em comum é a coerência interna.
O modus operandi de Walter Block pode ser simples. No tempo que corre, dizer qualquer coisa profundamente idiota garante espaço na mídia para ajudar a vender de tudo, até Afrin purgante, ou conseguir um emprego de professor na Loyola.
Seja como for, ele é um outdoor ambulante que anuncia a bondade de uma sociedade relativamente livre. Vamos pensar: se eu estivesse num avião lotado, sentado ao lado dessa praga, eu pagaria feliz para mudar de classe na mesma hora. Se eu estiver num boteco e ele se sentar numa mesa ao lado da minha, eu pago a conta antes de pedir a primeira cerveja. Mas em vez de curtir uma solidão atroz, em vez de ser enxotado de uma cidade para a outra, ele anda pelos EUA de cidade em cidade, indo a reuniões após o horário de aulas em escolas onde autodidatas tão ideologizados quanto ele, mas menos fedidos, se matam para ouvi-lo. De certa maneira, isso é compaixão.
Mas a coisa muda completamente de figura quando alguém difama os bengalis, que já estão bastante ocupados difamando uns aos outros. Eu gosto deles. Sim, Bangladesh é um dos países mais pobres, infelizes, corruptos, apinhados de gente, disfuncionais e desorganizados que existem (sim, são piores que o Brasil... mas não muito), mas o povo é gente finíssima (bom, o brasileiro também é, né?).
Embora sejam muçulmanos, a grande maioria dos bengalis não é fanática; as belíssimas mulheres bengalis usam saris e bindis (aqueles pontinhos vermelhos) porque se trata de uma tradição cultural, não especificamente hindu (usar essas roupas em público pode custar um linchamento às moças muçulmanas em algumas partes da nação islâmica do Paquistão). A riquíssima cultura bengali é tolerante, e a cultura deles vem em primeiro lugar.
Bangladesh é prenhe de alegria e discussões acaloradas; de belíssima poesia e prosa cheia de vida; em média, os jornais passam por onze pares de mãos antes de virar embrulho de peixe na tão bengali e vizinha Calcutá. Eles se parecem com irlandeses bronzeados. Eles também fazem piqueniques artesanais, levando os visitantes em chalupas às suas verdejantes aldeias ancestrais onde parentes os esperam com toneladas de acepipes engordativos; especificamente, os doces bengalis são os presentes de jantar que toda anfitriã do sul da Ásia espera ganhar. Os bengalis podem ser artistas e artesãos talentosíssimos, mas o país pode ser um lugar terrível e cruel. Eu adoraria ir a Bangladesh a passeio, mas agradeço aos céus por não ter nascido e por não morar lá.
É aí que Walter Block entra na história. Há pouco tempo, mais de mil trabalhadores da indústria têxtil de Bangladesh morreram no desmoronamento de uma fábrica caindo aos pedaços em Dacca. Sapassado (os mineiros entenderão), o Wall Street Journal culpou os consumidores americanos que insistem em comprar roupas baratas feitas, supostamente por necessidade, em prédios precários (muito estranho... se eu quero comprar roupas caras, por que não comprar em Paris em vez de Dacca?). Como não poderia deixar de ser, Block culpou quem? Sim, ele, o Estado. O que mais poderia ter vindo de um anarco-capitalista confesso? A ideologia dele associa até a síndrome do refluxo gastroesofágico a tenebrosas conspirações do governo. Não seria ele uma espécie de Sakamoto libertário?
Ele diz que os códigos de segurança e edificações do governo induzem todos a acreditar que as construções (por assim dizer) são seguras. Isso implica que ele nem conversou com um bengali nem pôs as patas no país em que fazer piada de político e dos burocratas, assim como no Brasil, é uma arte. Ele poderia ter se "rebaixado" a falar pessoalmente com um bengali antes de escrever o artigo, mas isso poderia ter estragado o prazer dele.
Depois (“surprise, Shanghai!”, já diria Fausto Fawcett) ele afirma que eles só precisam de um Estado libertário que não governe, em que seus custos de produção sejam tão baixos que todos prosperarão.
Quem quiser vender chiclete, caneta ou cadarço pelas ruas de Dacca precisa pagar uma "semanada" por esse privilégio. Esse dinheiro vai para bandidos "avantajados" que atuam em nível de quarteirão ou até mesmo meio-quarteirão, e que fazem parte de redes maiores de malandros bem maiores. As construtoras "miguelam" no material, a menos que o cliente seja especialista e tenha recursos para fiscalizá-las 24 horas por dia. Os quitandeiros sempre "batizam" o leite com água de rio; a farinha, eles "batizam" com serragem. Remédios falsos letais passam despercebidos até pelo farmacêutico mais honesto e atento. Famílias e até aldeias inteiras morrem pela ingestão de óleo de cozinha contaminado. Qualquer pessoa que não seja ideologicamente contaminada verá que, no meio dessa bagunça toda, um governo é necessário.
O governo de lá atua na repressão de badernas que queimam carros e lojas e espancam pessoas até a morte nas ruas. Os bandidos partidarizados que promovem as badernas não deixariam de promovê-las se o governo e os partidos fossem abolidos; eles simplesmente continuariam sob outra roupagem. Então, quem poderia detê-los? Talvez “o mercado tomasse conta do problema” e os pobres subornariam os "tubarões", e assim por diante.
Segundo Walter Block, os problemas de Bangladesh se resolveriam com a eliminação do governo, administrando ao organismo social uma dose cavalar e catártica de óleo libertário aromatizado com pitadas de Ayn Rand e Murray Rothbard. Ele prega a anarquia. Mesmo assim, o safado do dono da construtora não tem praticamente nada a ver com o governo, além de pagar uma propinazinha para escapar dos impostos. O vendedor de cadarços também vive num estado de anarquia, e ele paga bem caro para que seu produto não seja usado (e lentamente apertado) em volta do seu precioso pescocinho. As cidades de Bangladesh já estão em relativo estado de anarquia, e não do tipo fictício teorizado pelos seguidores de Ayn Rand e pelos débeis mentais contumazes, mas do tipo real, o Estado da Natureza “com dentes e garras sujos de sangue” retratado por Hobbes.
Quem teve paciência de ler este artigo atentamente até agora pode ter tirado quatro conclusões. Primeiramente, nossa moral e nossa ética formam as circunstâncias nas quais vivemos, mais do que o governo ou a falta dele. Um holandês, um canadense ou um japonês podem ter uma visão mais consciente de trabalho, comunidade e cidadania do que, talvez, um grego, um brasileiro ou um bengali. Que o governo seja reduzido de maneira prudente, concordo, mas reduzi-lo em excesso pode acabar com uma série de problemas e, ao mesmo tempo, piorar outros.
Em segundo lugar, estejamos nós falando de Economia, Política ou cuecas, não existe "tamanho único". Cada cultura é diferente e muda muito devagar, isso se mudar. O amável leitor pode argumentar que os cambalachos e a brutalidade cotidianos de Bangladesh decorrem da superpopulação do país, ou do desemprego, ou da pobreza opressora, ou da frouxidão moral nas áreas de comércio e política, ou de uma cultura que oprime os fracos, ou de famílias gigantescas que sempre exercem uma pressão atroz para se portar mal em favor de primos pobres ou gananciosos. Ou pode ser por tudo isso junto. Não importa. Embora um dia seja possível que ocorra uma mudança, nem mesmo um século inteiro de disciplina draconiana ou incentivos ao mercado derrubarão hábitos milenares. Desencanem. Vamos amá-los por seus piqueniques e alimentar seus famintos, e ponto final.
Em terceiro lugar, sentar a rotunda bunda numa cátedra polpudamente financiada confere ao seu ocupante uma licença para falar "groselha" (fundamentada numa quantidade enorme de ignorância e vaidade) para qualquer um que seja suficientemente idiota para ouvir. No entanto, ser um ideólogo ajuda bastante. Daí, é só engolir as próprias merdas e acreditar que sua visão de mundo bem maquinada, prazerosa e de conto-de-fadas ainda merece um tiquinho e credibilidade por causa da... coerência intelectual. Marx, como alguns de vocês devem saber, foi coerente sem nunca se rebaixar a passar um tempinho que fosse com seu amado proletariado, ficando com seu furunculoso cuzinho confortavelmente alapado numa cadeira estofada da Biblioteca Britânica, e suas "brilhantes" idéias mataram mais de 100 milhões de pessoas. Se algum lugar deste mundo fosse idiota o bastante para seguir as instruções cretinas (mas bem urdidas) de Walter Block, o caminho da ruína estaria escancarado.
Em quarto e último lugar, devemos perceber que a maioria das pessoas que se dizem libertárias é formada por conservadores normais que estão ou confusos ou humilhados pelos ilustres fascistas que falseiam o significado do conservadorismo. Mas se o amável leitor for como eu, às vezes encontrará verdadeiros libertários tão arrogantes quanto o Lúcifer da obra "Paraíso Perdido" (do poeta inglês seiscentista John Milton); tão sombrios quanto a noite; e tão malcheirosos quanto o enxofre dos infernos.
Esses são pessoas como o "festivo" Walter Block. Embora eles sejam humanos, passam longe de serem humanistas.