domingo, 30 de março de 2014

O esquerdismo contra a busca da felicidade

O egoísmo é uma coisa boa não porque “eleva o padrão geral de vida” nem porque “aumenta a produtividade dos trabalhadores”. Se não proporcionasse nenhuma dessas duas coisas, o egoísmo ainda seria uma coisa boa por um motivo ainda mais fundamental: ele é a motivação correta da nossa natureza enquanto seres humanos. Em resumo, o egoísmo é plenamente moral.

No entanto, a esmagadora maioria do debate público hoje em dia se dá dentro do paradigma moral estabelecido pela doutrinação esquerdista universal. Até mesmo pessoas de bons princípios que desejam defender a liberdade entram, muitas vezes, em debates confusos e invencíveis porque aceitaram, inconscientemente, as premissas morais da esquerda.

O paradigma esquerdista é difuso e sofisticado, mas pode ser resumido num único pensamento: “os indivíduos existem para o Estado, e não o contrário”. À primeira vista, essa idéia não é nova. A novidade é que essa idéia (que antes recebia o nome correto de tirania), foi reciclada e ganhou estatuto moral. Uma aliança entre pensadores sérios e subversivos espertos deslocou fundamentalmente o ônus da prova em questões morais em favor da presunção da autoridade coletiva sobre cada aspecto da vida. Esse princípio profundamente arraigado reduz todos que não se libertaram radicalmente dele à posição pírrica de argumentar que o afrouxamento do controle do Estado se justifica porque será benéfico de alguma forma para o Estado, defendendo a liberdade como uma maneira mais eficiente de atingir objetivos tirânicos, e não como nosso direito natural.

Se quisermos ter qualquer esperança de, por fim, recuperar a devida proporção das coisas, é essencial entender com exatidão como o ônus da prova moral se deslocou e como esse deslocamento distorceu o debate político.

Uma tradição intelectual desenvolvida no início da Era Moderna enquadrou a questão política básica da nossa época, da seguinte maneira: “Por que os homens livres precisam de governo?" Daí vieram as famosas teorias do “estado da natureza”, o vocabulário dos “direitos naturais” e “contratos sociais”, e o estabelecimento paulatino dos princípios do governo limitado.

Hoje em dia, o esquerdismo – tendo alimentado a humanidade por meio do seu moedor de carne educacional, artístico e burocrático – suplantou a questão política básica da Era Moderna e a inverteu: “Por que o governo precisa de homens livres?” 

A primeira questão surgiu da premissa de que seres humanos individuais e suas necessidades são naturais e primários, de forma que as imposições da autoridade coletiva sobre as relações sociais só se justificam na medida em que elas ajudam a promover nossos objetivos racionais e pré-governamentais. A segunda questão, que está implícita em toda a política contemporânea, decorre da premissa de que o coletivo é a realidade principal, de forma que qualquer liberdade individual que se permita desfrutar se justifica somente na medida em que atende aos objetivos da coletividade, os quais são definidos pelo Estado.

Como a civilização chegou a essa completa inversão metafísica e moral, da presumida prioridade do indivíduo racional concreto para a presumida prioridade de uma abstração denominada “sociedade”?

Foram os filósofos alemães revolucionários do final do século XVIII e do início do século XIX (Kant, Fichte, Hegel), seguidos por seus críticos e herdeiros intelectuais, de Schopenhauer a Marx, que desenvolveram as teorias que destruíram as almas e corroeram a Era Moderna. A base moral de sua influência corruptora era a visão de que o egoísmo (cujo significado é tão somente a busca da felicidade) é intrinsecamente imoral e servil, ao passo que a verdadeira liberdade implica a submissão da vida da pessoa aos interesses da coletividade, ou seja, do Estado. 

Essa virada histórica, do indivíduo como fonte de qualquer coletividade possível para a coletividade como fonte do que o indivíduo pode preservar, floresceu plenamente na Ética de Kant. 

O pensamento do século XVIII foi abalado pelas implicações aparentes da Física newtoniana: se o novo materialismo científico é mesmo abrangente – se a natureza mecanicista é tudo o que existe –, então o homem também deve ser redutível às leis de causa e efeito da ciência. Mas isso, temia-se, significaria o fim de todos os sonhos de singularidade humana, fazendo da liberdade moral uma mera percepção delirante do nosso lugar na cadeia causal da natureza.

A famosa solução de Kant, cristalizada em seu “imperativo categórico”, era que a única maneira de nos vermos como indivíduos livres, e não como parte de uma natureza mecanicista, seria rejeitar todas as motivações de interesse individual em favor da obediência a máximas morais universalizáveis. Em outras palavras, deveríamos obedecer a regras de comportamento “racionais” formadas independentemente de considerações contextuais, ou seja, independentemente de qualquer preocupação com nossa felicidade.

Esclareço: na maioria dos casos, as escolhas morais, entendidas da maneira clássica, são fundamentadas nas condições práticas da vida das pessoas, exigindo a combinação de um caráter bem-formado com um raciocínio prático maduro, ou seja, virtude, para encontrar e se dedicar à aurea mediocritas, definida pela situação específica e pela natureza humana. Portanto, a virtude não é apenas coerente com o nosso desejo de bem-estar ou felicidade (devidamente entendido), mas também sua realização. Viver de maneira virtuosa corresponde a buscar o bem – que é naturalmente desejável – através das escolhas feitas de acordo com nossas circunstâncias e com a natureza de um animal racional, que, por sua vez, é ser feliz. 

Essa fórmula é detalhada no mais influente de todos os tratados morais, a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, mas sua base (de que o homem é o animal que busca a felicidade) pode ser facilmente encontrada no pensamento moral existente antes da obra, de Sócrates a Demócrito, passando por Pitágoras; posteriormente seguiram essa linha os filósofos cristãos da Idade Média, os racionalistas e empiristas do Iluminismo, e, a rigor, toda e qualquer filosofia moral digna do nome.

Kant rechaçava categoricamente essa concepção de virtude fundada no desejo natural de felicidade (o desejo de se sentir “completo” e “perfeitamente vivo”) em favor da exigência de dever e obediência, desconsiderando a avaliação contextual que revela a legítima virtude. Em outras palavras, ele exigia que os homens negassem sua busca pelo que era bom para eles em favor do “bem” abstrato dele (a máxima universalizável), o qual, explicitamente, não era o bem de qualquer ser humano individual per se, mas a forma de silenciar toda e qualquer motivação egoísta. Disso decorre que todas as ações voltadas a atingir o bem-estar individual devem ser consideradas não apenas alheias ao domínio do raciocínio moral legítimo, mas, com efeito, uma motivação neutralizante que deve ser eliminada do pensamento moral. Em outras palavras, segundo o Kantismo, o desejo de felicidade, antes considerado uma motivação moral definidora da natureza, é, na melhor das hipóteses, moralmente irrelevante e, na pior, um obstáculo à moral pura. (A explicação que Kant dá sobre a felicidade é manifestamente confusa, trivializante e contraditória, talvez porque ele quisesse eliminá-la do domínio dos objetivos morais, mas sem conseguir ver como negar totalmente o valor dela).

O discípulo esquerdista mais influente de Kant, o autoritário Fichte, extraiu todas as implicações da Ética kantiana, aplicando à política prática o que Kant havia deixado em grande parte no domínio da teoria. Fichte, possivelmente o primeiro verdadeiro esquerdista no sentido estrito, se opunha à preocupação de Kant com a salvação da dignidade e do livre-arbítrio humanos, considerando-os um retrocesso ilegítimo à antiga moral do egoísmo que, em termos sempre kantianos, deve ser eliminado pela raiz. Declarando o livre-arbítrio como inimigo da verdadeira moral e prescrevendo sua erradicação como a principal função da educação, Fichte defendia a obediência ao dever social por si mesmo e, especificamente, a submissão da consciência individual ao coletivo. O Estado suplantaria a função de um ser transcendental da religião tradicional, substituindo Deus por um novo Paraíso na Terra, também definido por Fichte como “a nação”, “Alemanha” e “o futuro”. 

Paradoxalmente, a vida espiritual da liberdade moderna estava longe de acabada, mesmo quando a implementação prática mais plena dessa vida, a América, ainda estava em sua infância. A primeira nação a fazer da “busca da felicidade” um princípio fundamental explícito – uma expressão sucinta e expressiva do liame entre moral e liberdade política – seria obrigada a crescer num mundo em que essa busca acabara de ser declarada ilegítima e imoral pelos principais intelectuais. A verdadeira vanguarda e esperança da modernidade foi, de repente, tachada de perdidamente retrógrada e superficial, aferrando-se a uma perspectiva moral antiquada que colocava o “simples” bem-estar individual acima do bem do Estado.

Daí foi um pequeno passo para o desenvolvimento do socialismo do século XIX e do comunismo – a Paz Perpétua de Kant estabeleceu o alicerce espiritual da Organização das Nações Unidas, e os Discursos à Nação Alemã de Fichte já exigiam a doutrinação compulsória contra a consciência e a propriedade privadas. Entre as elites intelectuais européia e norte-americana do século XIX, educadas nas novas filosofias alemãs da moda, muitas vezes estudando em universidades alemãs, a idéia de que a moral implicava a recusa de todas as motivações de interesse próprio se alastrou como fogo na floresta. Essa recusa da busca da felicidade pessoal (o coração do pensamento moral correto) seduz tanto os intelectuais rancorosos quanto os operadores da política, sedentos de poder, pois menospreza todas as esperanças ou motivações humanas que possam desafiar os grandiosos projetos, de um tipo ou de outro, artificialmente impostos. O despotismo paternalista e os ataques teóricos a todas as noções de governo estão enraizados na liberdade natural foram o “arroz com feijão” do pensamento Ocidental “avançado” durante todo o século XIX, impulsionaram as atrocidades totalitárias do século XX e são a essência da política institucional de hoje. 

Já o inevitável descompasso entre a evolução dos principais pensadores e a evolução das “massas” ou do “povo” pode ser atribuído à implementação gradativa da verdadeira sociedade esquerdista imaginada pelos precursores acadêmicos e políticos. A educação pública universal, que era o passo mais indispensável, chegou logo, calcada nas escolas prussianas originais inspiradas por Fichte. Pari passu à educação pública vieram a marginalização do papel da família no desenvolvimento das crianças (meta primordial dos primeiros defensores da escola pública), a diminuição da distinção entre homens e mulheres (transformando gradualmente as partes complementares da natureza em “operários” espiritualmente uniformes), e o enfraquecimento da fé religiosa em favor da deificação do governo.

Psicologicamente, a recusa da ética da felicidade em favor da auto-abnegação “desinteressada” diminuiu e desnaturou nossa espécie, gerando a personalidade moral dividida que assola a sociedade moderna – uma cruza de coletivismo sentimental com a busca niilista do “eu”.

Uma teoria defeituosa não pode mudar a natureza. Os seres humanos devem buscar e continuarão buscando sua preservação e seu desenvolvimento. Contudo, em virtude da difamação universal da felicidade individual como uma motivação imatura ou imoral, os homens foram deixados sem uma educação calcada na razão e sem a natureza para orientar sua busca pelo bem. O resultado político dessa dissonância moral é a corrente predominante de hoje: pessoas gananciosas, vorazes e irracionais em busca do prazer que, além disso, são idiotas úteis nas mãos de todo demagogo carismático que agite seu sentimentalismo niilista contra “os ricos”, “os cruéis”, e aqueles que têm “mais do que a parte justa que lhes cabe”. 

O ataque peçonhento da academia alemã ao individualismo e à ética da felicidade pessoal (ou seja, à virtude) infectou rapidamente cada órgão da modernidade, dos pináculos da torre de marfim às mais modestas escolas com uma única sala de aula. Os dogmas morais das filosofias idealistas e pós-idealistas alemãs (de Kant e Fichte a Marx Marx e Engels, chegando até a Escola de Frankfurt) se transformaram nas crenças que definem o mundo moderno ultimamente:
  • O indivíduo é simplesmente uma faceta ilusória da coletividade.
  • O egoísmo, que significa a preocupação com o próprio bem-estar, é imoral.
  • A busca da própria felicidade é mesquinha e superficial.
  • A verdadeira moral está na submissão da mente individual à coletividade.
O futuro pertence àqueles que aceitam a trajetória da História, que está paulatinamente dissolvendo todas as distinções entre nações, entre homens, entre homens e mulheres, entre adultos e crianças e entre razão e sentimento. Estamos sendo arrastados juntos pela corrente da História para sonho caleidoscópico de autocriação coletiva orientada pelo Estado ilimitado.

Contrárias aos brutamontes alemães mais impacientes, como Fichte e Marx, as formas pluralistas de autoritarismo esquerdista provaram, de maneira geral, ser o meio mais duradouro de incorporar ideais coletivistas a uma sociedade. Talvez isso se deva ao infindável gênio do homem democrático de embelezar o Inferno com correntes ricamente ajaezadas e chamas perfumadas. Assim, “o império do povo”, filtrado pelo prisma da ética coletivista, passa a ser a pretensão de cada homem de reivindicar legitimamente a vida, o tempo, e o trabalho de todos os outros homens. 

Esse é o mecanismo pelo qual o “despotismo de veludo” de Tocqueville foi implementado em escala mundial. O mecanismo tem dois lados (ou duas fases). O lado famoso é o que conhecemos por “mentalidade dos direitos”, que, em termos simples, é a pretensão de que cada integrante da coletividade é dono de todos os outros e, portanto, pode exigir coisas deles à força.

Contudo, o outro lado da moeda, igualmente importante, é a suposição de que cada homem é propriedade da coletividade e, portanto, deve render tributo à besta para ser considerado digno de viver. A função desse lado, do ponto de vista dos esquerdistas (que o cultivam com esmero), é reforçar a ética da negação do “eu”, inculcando a regra social da submissão ao Estado, pela qual quem resistir ao seu devido papel de servo da coletividade (ou seja, do Governo) deve ser proscrito como “egoísta” e punido e/ou reeducado.

Isso nos leva ao ponto em que começamos: até entendermos e rechaçarmos toda essa estrutura ética (a filosofia alemã que se tornou o pano de fundo moral da nossa civilização), nunca conseguiremos argumentar adequadamente em favor da liberdade. Se aceitarmos a premissa de que a busca da felicidade é imoral (indistinta da “ganância”), seremos reduzidos ao argumento tímido e autodestrutivo de que uma parcela da liberdade deve ser tolerada como maneira mais eficaz de gerar a prosperidade que sustenta o jugo autoritário. O Partido Comunista Chinês de hoje discordaria disso? Creio que não.

Vamos voltar ao único argumento digno do assunto: os indivíduos são metafisicamente e moralmente mais antigos que as coletividades. A felicidade é nossa motivação moral correta. O homem livre não precisa se justificar perante o Estado; o Estado, sim, deve se justificar perante o homem livre. Essas são as premissas que herdamos de nossa tradição e da nossa natureza, embora, hoje, procuremos por ela no escuro, envoltos pela névoa da filosofia despótica que domina nosso mundo.

Quero concluir com uma lufada de ar moral fresco que vem d’além dessa névoa:
Et ideo ultima et perfecta beatitudo, quae expectatur in futura vita, tota consistit in contemplatione. Beatitudo autem imperfecta, qualis hic haberi potest, primo quidem et principaliter consistit in contemplatione, secundario vero in operatione practici intellectus ordinantis actiones et passiones humanas, 
Portanto, a felicidade definitiva e verdadeira que se espera na vida que virá, consiste inteiramente na contemplação [da essência divina]. Mas a felicidade imperfeita, como a que se pode ter aqui, consiste primeira e principalmente na atividade do intelecto prático para a direção das ações e paixões humanas (...)
[Santo Tomás de Aquino, Summa Theologiae, Tratado sobre o Fim Último, Quaestio III, Articulus VI, Iª-IIae q. 3 a. 5 co.]

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