Alguns ateus, muçulmanos e cristãos fundamentalistas gostam de reclamar e chiar pelo fato de que as comemorações de Natal e Páscoa são “pagãs.” Eles estão, ao mesmo tempo, certos e errados. Eles têm razão na medida em que a nossa cultura ocidental tem raízes profundas nas culturas pré-cristãs da Europa. Mas eles também estão redondamente enganados, pois os primeiros cristãos, como os judeus antes deles, consideravam sua religião um contraste e uma correção da cultura pagã predominante à época.
Devemos ser iconoclastas culturais e expurgar todos os vestígios de paganismo do mundo moderno? Devemos abandonar nossas árvores de Natal e jogar no lixo os ovos de Páscoa? Se assim for, deveriam os anglófonos, por exemplo, adotar os nomes cristãos dos dias da semana em detrimento da homenagem às divindades pagãs Tiu (Tuesday), Odin (Wednesday) Thor (Thursday) Frige (Friday) e Saturno (Saturday), isso para não falar do culto ao sol e à lua (Sunday e Monday)?
A "purificação cultural" deveria continuar, exigindo que os nomes do meses do ano fossem expurgados de suas absurdas associações demoníacas e pagãs! Fora com Janus, o deus de duas caras de janeiro! Fora com Marte (de março), com a deusa Maia (de maio) e com Juno! Dia de Ano-Novo? O horror, o horror! A comemoração do início do ano em janeiro é pagã "do primeiro ao quinto"!
O conservador nunca deve ser um iconoclasta. Ele afirma que o passado é o alicerce do futuro. Nossa cultura ocidental está profundamente arraigada nas civilizações clássicas da Grécia e de Roma, mas também nas culturas pré-cristãs da Europa. Os costumes ancestrais se fundiram, desenvolveram e adaptaram às mudanças dos tempos, mas não devem ser desprezados simplesmente por serem pagãos ou por serem do passado. Um bom exemplo de como um costume de origem pagã se transformou numa comemoração hodierna é o Dia de Ano-Novo.
Os primeiros registros de uma comemoração de Ano-Novo datam de 2000 a.C., na Mesopotâmia. Depois, na época do patriarca Abraão, o novo ano era anunciado não no meio do inverno (do hemisfério norte), e sim no equinócio de primavera (também do hemisfério norte), em meados de março. Em consonância com esses costumes já ancestrais, o primeiro calendário romano tinha dez meses, e também reconhecia o mês de março como o início do ano. Daí os nomes dos meses de setembro, outubro, novembro e dezembro: contando a partir de março, eles eram o sétimo, oitavo, nono e décimo meses.
Numa Pompílio, segundo rei de Roma, acrescentou janeiro e fevereiro ao calendário e, em 153 a.C., surgiu o primeiro registro da comemoração do Dia de Ano-Novo no primeiro dia de janeiro. A mudança foi decretada por motivos civis (os cônsules iniciavam seu mandato nessa época), mas muita gente continuava reconhecendo o mês de março como o início do ano.
Quando Júlio César substituiu o antigo calendário lunar em 46 a.C. por um calendário solar, ele também formalizou o início de janeiro como Dia de Ano Novo. Com a queda do Império Romano e a transição da Europa para a nova religião e o domínio do cristianismo, os vestígios da cultura pagã foram expurgados. O Dia de Ano-Novo no início de janeiro foi oficialmente eliminado pelo Concílio de Tours em 597 e, em toda a Europa, o início do novo ano passou a ser comemorado em várias épocas: Natal, Páscoa ou, a data mais significativa, 25 de março.
A data de 25 de março não apenas guardava relação com as comemorações mais antigas do novo ano no equinócio de primavera, mas, no calendário cristão, 25 de março corresponde à Anunciação, ou seja, o anúncio do Arcanjo Gabriel à Virgem Maria de que ela geraria um filho. A data de 25 de março foi determinada pela crença judaica de que os grandes homens eram concebidos no mesmo dia do ano em que morreriam. Jesus Cristo morreu em 25 de março (segundo reza a teoria), ou seja, ele foi concebido em 25 de março. Por acaso, essa é, também, a origem da data tradicional do Natal – nove meses a contar de 25 de março.
Os cristãos da Idade Média achavam que o início da vida do Filho de Deus no útero da Virgem Maria era o início da obra de Deus entre os homens, a restauração e a redenção do mundo e o início de uma nova Criação. Portanto, era teologicamente adequado que o dia 25 de março, ou o dia da Anunciação da Virgem Maria, fosse comemorado como o Dia de Ano-Novo. E assim foi por mil anos.
Então, em 1582, o papa Gregório XIII reformou o antigo calendário de Júlio César. Em virtude de uma imprecisão de cálculo, a data da Páscoa era móvel, e o papa decidiu torná-la fixa. Uma parte da reforma consistia em restabelecer o dia 1º de janeiro como Dia de Ano-Novo. Por considerar essa reforma uma ousadia do papa, a Igreja Ortodoxa Oriental rechaçou a reforma. Por considerar essa reforma não apenas uma ousadia do papa, mas também a restauração do paganismo, os Protestantes também rechaçaram o novo calendário gregoriano. Os ingleses só adotaram o novo calendário em 1752. Os gregos mantiveram o calendário antigo até 1923. Os monges do Monte Atos ainda mantêm o calendário juliano.
O amável leitor deve estar se perguntando por que eu mencionei no título do artigo a queda de Sauron, inimigo do Senhor dos Anéis? J. R. R. Tolkien foi muito astuto na maneira como urdiu o simbolismo cristão na trama de seu mito épico. Ele registra as datas dos grandes acontecimentos no ciclo do anel, e descobrimos que é em 25 de março que o anel do poder é lançado nos fogos da Montanha da Perdição e, assim, a destruição de Sauron anuncia um novo começo para a Terra Média. Dessa forma, Tolkien assina embaixo da tradição cristã medieval de que o dia 25 de março é o verdadeiro Dia de Ano-Novo.
Quem comemorou a entrada do novo ano nesta quarta-feira deve ter em mente que, por mil anos, essa comemoração não foi uma simples data em vermelho no calendário, mas sim um acontecimento cultural e religioso que vinculava a renovação da natureza com a redenção do mundo.
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