Como os amáveis leitores já devem (ou deveriam saber), sou tradutor profissional desde 1997 (com pré-estréias em 1993 e 1995). E, sim, sou o que se chama de native speaker, mesmo tendo nascido cá no Brasil. Ocorre que fui criado com inglês, alemão e português falados diariamente em casa.
De vez em quando, encontramos em textos para verter do português ao inglês (e outros idiomas) coisas sobre as quais nunca paramos muito para pensar. Nesses casos, às vezes a memória (ou o conhecimento) nos trai com um ou outro termo e acabamos recorrendo ao "Pai Gugo", ao mal-afamado Proz.com, a fóruns de tradutores e outras fontes menos cotadas.
Hoje me deparei com um desses casos: como dizer "coxinha de galinha" em inglês? Vejam bem, não me refiro ao desairoso epíteto do qual lançam mão abundantemente os "pogreças" para se referir aos "reaças", e sim ao brasileiríssimo salgadinho.
A questão parece trivial, mas me leva a uma reflexão bastante pertinente, principalmente por estarmos às vésperas de receber quilotons de turistas de todas as partes do mundo para a Copa do Mundo e para os Jogos Olímpicos.
Ora, um anglófono que se depare com um cardápio destes certamente morrerá: ou de rir, ou de ódio ou de fome. Juro que eu teria muito medo de um lugar que serve giz de cera (crayon), uma lasanha de meias (stocking "lasanha"), ou páginas viradas de queijo ("turned pages of cheese").
Mas justiça seja feita: nós outros cá em Banânia somos arrogantes e queremos ser levados a sério com essas mal-ajambradas tentativas gastro-tradutórias. Os orientais em geral sabem que traduzem ainda pior, mas se divertem com as reações dos ocidentais angloparlantes ao mais perfeito Chingrish. Vejam isto:
"Garçom, quero uma porção de frango escorregadio em mingau de cogumelos". Bem, comparando lá e cá, não fazemos tão feio.
Eu fico hirto, pasmo e chocado com a tendência de traduzir tudo nos cardápios. Por que, meu Deus? Por que cacetes murchos eu traduziria "samba", "berimbau", "cuia", "pala", "lambada", "vatapá", "acarajé", "churrascaria", etc.? E não venham os "inteliquituais" me dizer que churrascaria é a mesma coisa que steakhouse. Uma churrascaria é mil vezes melhor. Conheço ambos os conceitos. Certas coisas são tão ligadas a uma cultura que é melhor deixá-las sem tradução mesmo. No máximo (e, sim, desejavelmente) deve-se apor uma explicação dos componentes do prato, tout court.
Mas, numa pesquisa rápida pelo Google, procurei saber como andam traduzindo para o inglês os nomes de clássicos da comida de boteco baixa gastronomia brasileira. Encontrei coisas de arrepiar os cabelos do Esperidião Amin.
NOTA AOS LEITORES MAIS DESATENTOS: Esta lista NÃO se trata de um glossário. Trata-se, sim, de como NÃO TRADUZIR para o inglês os nomes dos salgadinhos e outros acepipes.
Bolinhas de queijo > Cheese balls
Este foi o único caso em que a tradução parece aceitável. Para ser absolutamente correta, eu acrescentaria deep fried (fritas).
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Coxinha de galinha > Chicken drumstick
Bem, até o Google Translate embarca nessa canoa furada. Experimentem. Seja como for, explico a confusão. Um drumstick é uma coxa de frango (ou galinha, para os não-paulistanos) com o osso. O salgadinho, como todos sabem, é feito com frango moído ou desfiado, ou seja, não é uma coxa de frango e muito menos tem osso. A diferença é brutal. O mais correto é manter a palavra "coxinha" no item do cardápio. A explicação entre parênteses embaixo do item poderia conter algo como chicken thigh-shaped... Melhor explicar do que inventar.
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Patê de atum > Tuna spread
Pode-se até argumentar que a tradução está correta. Nos Estados Unidos, os tuna spreads levam aipo, picles picados, pimenta, etc. Mais uma vez, há diferenças - não tão brutais, mas a mensagem é transmitida de maneira errada.
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Ovo empanado > Coated egg
Esta foi um chute nos meus ovos peludos! Coated egg se refere a uma coisa totalmente diferente em inglês. "Ovo de casaca" ou, mais tecnicamente, "ovo revestido" é de um primarismo atroz. Eu até aceitaria breaded egg. O melhor, mais uma vez, é manter o nome em português e apor uma explicação do tipo "Brazilian-style breaded egg".
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Batata frita > Deep-fried potato, French fries
French fries eu aceito toto corde*. O problema está em "deep-fried potato", que se refere àquelas batatas cortadas em cunha. O que faz uma French fry ser uma French fry é mais do que o modo de preparo. A maneira de cortar a batata é fundamental.
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Quibe > Bulgar wheat meat balls
Para início de conversa "Bulgar" (1) se refere a uma pessoa que nasceu ou mora na Bulgária, ou ao idioma falando na Bulgária, e (2) é um substantivo, não um adjetivo. Além disso, "quibe" é de origem árabe, não búlgara.
Agora, vamos penetrar fundo (ui!) na psiquê do nosso querido aspirante a tradutor. Ele seguramente confundiu Bulgar com bulgur, que, em português, é "triguilho" (em árabe, برغل burghul). Quanto a meatballs, bem, todos sabem que uma almôndega (al-bunduqa, ou "a bola") não tem nada a ver com um quibe. Por incrível que pareça, a palavra árabe que deu origem a "quibe" é kubbah, cujo significado é "bola". Em inglês, a transliteração dessa palavra é kibbe ou kibbeh. Em espanhol argentino, diz-se quipe. Outros nomes desse prato vêm da palavra persa کوفته kofteh (literalmente "moído [carne]"), como içli köfte (em turco), իշլի քյուֆթա išli k’yuft’a (em armênio) e cafta (em português).
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Salsicha empanada > Coated sausage
Mais uma vez, o tradutor comete um crime tradutório. Breaded sausage é uma tradução muito melhor. E digo mais: a solução "esperta" de aproximar a salsicha empanada do corn dog é outro erro crasso, cometido apenas do tradutor que não tem idéia de como as iguarias são preparadas. Seja como for, coated sausage me remete a uma "salsicha encasacada".
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De todas as iguarias dessa lista, apenas French fries será reconhecida imediatamente por quem não for lusófono. Minha filosofia de tradução é a seguinte: se não estiver quebrado, não tem sentido consertar. Em outras palavras, repito minha orientação de usar o nome original do prato no idioma em que ele foi criado, mas explicá-lo no idioma de destino (inglês, neste caso).
Vou dar alguns exemplos da minha experiência pessoal. Passei quase um ano na República Dominicana, onde se fala espanhol. Não é raro ir a um restaurante internacional no país e receber do garçom ou maître um cardápio em inglês. Os nomes dos pratos são, muitas vezes, traduzidos para o inglês. Eu sei o que é um "lomito saltado", um "tacu-tacu", etc. O problema é que cada restaurante traduz os nomes dos pratos da sua própria maneira. Seria tão mais fácil se eles usassem o nome original (os pratos dos exemplos que dei são peruanos). Se eles quiserem explicar em inglês, ótimo, mas devem indicar o nome original em destaque para que os clientes saibam de que cazzo estão falando. Em Los Angeles, na Califórnia, eu perguntei num restaurante argentino se eles tinham molho para o asado. O garçom me garantiu que eles tinham um molho feito com azeite, salsinha, cravo, suco de limão, tomilho, orégano, pimentão, etc. Eu me dei conta na hora de que ele acabara de me dar a receita do famoso "chimichurri". Por que ele não disse o nome logo no começo?
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