ATENÇÃO: ESTE ARTIGO
CONTÉM REVELAÇÕES SOBRE O ENREDO. SE AINDA NÃO ASSISTIU AO FILME COMENTADO,
SUGIRO QUE PARE DE LER AGORA.
Na última terça-feira, logo após a partida
Brasil x México, fui ao cinema (Cinemark do shopping Metrô Santa Cruz) e, após
breve “reunião deliberativa” com minha namorada, decidimos por comprar
ingressos para “Malévola” (título original “Maleficent”).
Após 1h37 de exibição, terminado o filme,
saí do cinema bastante incomodado com o enredo do filme. Explico.
Contos de fadas “adaptados” já são
tradicionais na cultura popular dos Estados Unidos. Jay Ward ficou famoso por
um segmento exatamente com esse título no seu desenho animado “As Aventuras de
Alceu e Dentinho” (The
Adventures of Rocky and Bullwinkle). Mesmo nas doses homeopáticas
administradas por Jay Ward, os contos de fadas privados de seu teor dramático
original por meio de ironias, alusões, referências populares e, é claro,
linguagem coloquial, acabaram se transformando em peças ao mesmo tempo banais e
banalizantes. Muitas vezes tive a impressão de que eles diziam “Escuta, você
não tem nada melhor para fazer? Acho que tenho aqui uma historinha, mas não
espere muita coisa dela, está bem?”
Como acontece com tudo o que é banal,
Hollywood pegou o conto de fadas adaptado e o amplificou a proporções
astronômicas. Infelizmente, as proporções só fazem destacar a falta intrínseca
de significado do produto e a condescendência com que os produtores passaram a
encarar o público. Algum estudante de algum curso de Cinema pode acabar
escrevendo uma tese (ou, vá lá, um TCC) sobre os significados mais profundos
das animações “Shrek” (da Dreamworks) ou “A Onda Nova do Imperador” (da Disney)
– e, o que é pior: tenho certeza de que alguém já fez isso, e, se fez, aposto
dez contra um desconfio que foi na Escola de Comunicações e Artes da USP), mas
o resultado seria um monstruoso vácuo intelectual.
E agora, nas telonas brasileiras, temos Malévola. Trata-se da reductio ad nauseum (para “adaptar” uma expressão) dos
contos de fadas. O filme (bem, chamá-lo de filme é exagerar sua importância) é “produzido”
e “estrelado” por Angelina Jolie, uma anoréxica que já foi atraente e que
permanece igualzinha quanto à sua falta de talento perceptível como atriz. Malévola nem sequer se preocupa em indicar
suas várias adaptações (ironias e alusões exigem um esforço demasiado). A
produção é, na verdade, um negócio tão improvisado, que despreza tanto o
público e o conto A Bela
Adormecida que ela corrompe,
que fico imaginando como os roteiristas conseguiam ficar acordados durante o
trabalho. A rigor, é terrivelmente irônico que o filme tenha passado por tantas
mudanças de roteiro e até mesmo de filmagem. Só posso imaginar que o resultado
teria sido uma história tão esquisita, complicada e chata que os produtores
acharam melhor simplesmente arrancar tudo o que fosse além do minimum minimorum de uma história que pretende “corrigir”
o conto original.
Não se trata de uma história de “comédia”,
então fomos (bastante) poupados de qualquer tentativa de humor da Angelina
Jolie ou dos adereços ao seu redor na tela. O que vimos foi um “conto moral”
tão tosco que foi incapaz sequer de suscitar a ira de qualquer adulto (ou
adolescente) pensante que estivesse na sala de cinema.
O filme certamente nos mostra que a Bela
Adormecida (Princesa Aurora) foi amaldiçoada não por uma fada má, mas por um
Papel Feminino Forte que foi não apenas desprezada, mas também traída e
mutilada por um idiota mentiroso determinado a usá-la para conquistar poder e
riqueza. Embalada por uma falsa sensação de segurança criada por declarações de
afeto, Malévola adormece e suas asas (negras) são cortadas. Com certeza o
criminoso não é capaz de demonstrar remorso verdadeiro, e usa sua deslealdade
para conquistar o trono de sua terra e procurar destruir a terra mágica
governada por Malévola. Quase sem dúvida alguma (poderia dizer “previsivelmente?”)
a fada boa (e Papel Feminino Forte) Malévola é levada quase à loucura e a um
ato imprudente e hostil do qual ele logo se arrependerá. Tendo amaldiçoado a
filha do rei a cair em sono eterno ao final do seu décimo-sexto aniversário (a
menos que seja salva por um Beijo de Amor Verdadeiro, no qual ela não acredita
mais), Malévola “amolece”, como era de se esperar. Enquanto seus súditos
sofrem, ela (é claro) cuida da criança e acaba amando-a. E, com certeza, nossa
heroína se redime no final, mostrando sua força, a fraqueza final do homem
ganancioso que, no fim das contas, age movido por medo e culpa, restabelecendo
a paz e o bem-estar para si, sua terra e o belo adereço de cena que é a Bela
Adormecida.
Malévola até mesmo nos oferece uma cena em
que um belo príncipe se mostra impotente para despertar a Bela Adormecida ao
tentar curá-la com o Beijo de Amor Verdadeiro. Não tenho dúvida de que esse
último toque tinha a intenção de surpreender o público. Mas não há tensão
nenhuma na cena. Ficamos sabendo, a essa altura, que, nesse mundo, os homens
têm pouco a oferecer além de sofrimento. E tudo isso é tão improvisado e
terrivelmente “conveniente” que a mensagem politicamente correta é incapaz de
comover a ninguém.
No final, como é de praxe, nos é servida
uma cena de vitória, estando o Príncipe seguro em segundo plano, e Malévola
reunida com a Bela Adormecida, a qual ela mesma despertou com seu beijo.
Talvez, se os produtores tivessem esperado mais um ou dois anos para fazer esse
filme, as moças teriam se casado. Mas não importa. Na verdade, nada nesse filme
importa. Ele não passa de mero espetáculo. Uma coleção de efeitos especiais (o
dragão é muito legal mesmo!) e cenas de luta bem desajeitadas servem para
prender nossa atenção por tempo suficiente para comer a pipoca e beber o
refrigerante. Além disso, e do desejo de “dar o recado” pelo próprio fato de
ter um Papel Feminino Forte predominante, o filme não tem
absolutamente nada que seja sequer digno de repulsa intensa. Talvez se os
produtores tivessem mantido os personagens extras esquisitos o filme teria sido
pelo menos detestável, mas até nisso ele fracassa.
Eu assisti a outro filme da Disney, ”Frozen: Uma Aventura Congelante”,
e ele merece todos os meus elogios. A animação foi menos um conto de fadas
adaptado do que uma história original inspirada por uma maravilhosa narrativa à la Hans Christian Andersen. Mas, em Frozen, existe narrativa e
coerência normativa. A vitória é conquistada através do amor de uma irmã pela
outra e a heroína ganha não apenas o amor da família, mas também uma abertura
mais amadurecida para a possibilidade de um verdadeiro amor romântico. Os
roteiristas de Frozen criaram uma bela história que pretendia apresentar uma
virtude verdadeira. Em Malévola,
a Disney enveredou por um caminho que a está tornando cada vez pior do que já
é. Previsto, sem dúvida alguma, como mais um “filme subversivo” (como “Pocahontas”)
que golpeia as normas tradicionais, o resultado final prevalece até mesmo sobre
a correção política rastaqüera.
Malévola é literalmente degradante em todos esses
aspectos, e sua atitude ficou tão comum que deixa evidente uma cultura degradada.
A opinião dos produtores do filme parece ser que eles têm direito – desde que
preguem as atitudes “certas e tenham um Papel Feminino Forte – de abrir mão de
qualquer história real e bem trabalhada que mostre emoções e motivações reais
que exponham tanto virtudes como vícios reais.
Quanto ao Papel Feminino Forte, é cada vez
mais comum na nossa sociedade que todos afirmem exigir que todas as mulheres
sejam “fortes” no estreitíssimo e limitadíssimo sentido de serem capazes de
realizar atos vigorosos, exibir emoções fortes e sair derrubando tudo à sua
volta. É triste observar que, para muita gente (especialmente hos homens) na
nossa cultura, mulheres “fortes” são mulheres que podem ser usadas e
descartadas sem remorso porque são “iguais” e “responsáveis por suas próprias
vidas”, como se todos não fôssemos, no fim das contas, responsáveis uns pelos
outros. A mulher realmente forte na nossa atual sociedade é aquela capaz de dar
a uma bobagem tão pedante quanto esse filme o valor que ela realmente tem:
doutrinação dirigida a privá-las de sua natureza humana e afastá-las de
vocações mais elevadas, rebaixando-as ao nível dos reduzidos homens, que, hoje,
aprendem que a força não significa na da além de rechaçar os papéis
tradicionais, convergindo em ambigüidade sexual, depois seguindo seus desejos
do momento. Ah, e sem se esquecer de ir regularmente ao cinema para assistir a
filmes insípidos.
Muito obrigado por nada, dona Disney!